Português (Brasil)

Danilo Reis: 29 anos da “tragédia da COMVAP" em União (PI)

Danilo Reis: 29 anos da “tragédia da COMVAP" em União (PI)

Há quase três décadas os unionenses testemunharam um trágico acidente automobilístico, envolvendo dois veículos da indústria de álcool e açúcar COMVAP.

Compartilhe este conteúdo:

*ESCRITO POR DANILO JOSÉ REIS 

Esta coluna é publicada todas as segundas-feiras e trás a história, os fatos, os mitos e as polêmicas do município de União (PI).

(Foto: Jornal O Dia, 1991)

O dia 19 de julho de 1991 foi uma data que ficou marcada na memória do município de União. Nesse dia, os unionenses acordaram com a notícia de um grave acidente automobilístico envolvendo dois veículos da Companhia Agroindustrial do Vale do ParnaíbaComvap, indústria canavieira com atuação no município desde 1979. O acidente ocorreu por volta das 05:30 da manhã, quando dois caminhões (Mercedes) da companhia – um deles transportando cerca de 70 trabalhadores – se chocaram a caminho do “Sítio Comvap”, sede da empresa. O veículo com trabalhadores foi atingido na lateral, perdendo imediatamente o controle e capotando por várias vezes. A violência do impacto arremessou os tripulantes para vários metros de distância, causando a morte imediata de oito deles. Muitos ficaram em estado grave, com escoriações, fraturas, e mutilações. Um verdadeiro cenário de filme de terror!

O fatídico acidente já era “carta marcada” há bastante tempo. As péssimas condições de transporte evidenciavam uma tragédia a qualquer momento . Os trabalhadores do corte da cana eram transportados indevidamente em caminhões sem as mínimas condições de segurança, e  que trafegavam por estradas em péssimas condições de uso. Ademais recaia contra os administradores denúncias de intimidação, perseguição e ameaças contra os trabalhadores. A empresa também era acusada por exploração da mão-de-obra infantil.

O momento pós-tragédia foi de muita euforia e desinformação. A falta de esclarecimentos amplificou a angústia dos familiares das vítimas. Após o acidente, a área foi rapidamente cercada pela empresa com a finalidade de barrar a entrada de qualquer pessoa. Segundo a imprensa, o proprietário tentou dificultar o trabalho da perícia utilizando um carro-pipa para limpar os vestígios de sangue no local. Outra polêmica envolveu a retirada indevida dos corpos. De acordo com o jornal O Dia, os cadáveres foram levados para uma propriedade do mandatário próximo ao local, onde foram examinados por um médico não-especialista, vindo de União, que fez a liberação dos mesmos para as respectivas famílias. Isso resultou em uma grande celeuma, pois o delegado de polícia de União deveria ter acionado o Instituto Medico Legal, para que os corpos pudessem ter sido levados para a perícia de um médico legista. Dos nove cadáveres retirados do local, apenas um seguiu os trâmites legais.

Missa-manifesto no Centro do Sítio (Foto: Jornal O Dia)

A notícia da tragédia gerou muita repercussão e grande comoção. A maioria das vítimas foram encaminhadas para o Pronto Socorro do Hospital Getúlio Vargas, em Teresina, onde uma multidão se concentrou na porta do hospital para acompanhar a chegada dos acidentados. Por falta de espaço eles foram acomodadas no chão, e atendidos na medida do possível pelos médicos de plantão, que se debruçaram em socorre-los. O saldo final da tragédia foi de 15 mortos (entre eles um menor de 12 anos), 6 desaparecidos, e 43 feridos, dos quais 15 tiveram membros amputados. Os mortos residiam em União, Lagoa Alegre  (ainda União), e José de Freitas.

De imediato, a direção da empresa tentou atribuir a culpabilidade aos dois motoristas, que se evadiram após a colisão. Porém, denúncias afirmavam que os mesmos trabalhavam até dezoito horas por dia, com pausa apenas para o almoço. A situação era ainda mais calamitosa para os “cortadores”. Eles chegavam para o trabalho por volta das cinco da manhã e permaneciam até o final da tarde, sendo transportados em “caminhões-gaiola”, veículo proibido para esse tipo de transporte. Ademais, eles trabalhavam sem nenhum tipo de equipamento de proteção, e a maioria sem contrato de trabalho, ferindo os dispositivos da CLT. Isso criou, por exemplo, dificuldades para que as vítimas conseguissem as suas respectivas indenizações.  Para se ter ciência, a Comvap empregava 2.700 trabalhadores, sendo 2.300 de boia-frias, com nenhum vínculo empregatício. Eles trabalhavam por produção, recebendo uma faixa de quatro a cinco mil cruzados por semana.

A tragédia escancarou para o opinião pública as péssimas condições de trabalho em que eles estavam sujeitados. Isso resultou numa grande mobilização por parte da sociedade piauiense. Entidades políticas, sindicais, civis e religiosas, se envolveram na questão, correndo atrás dos direitos das vítimas e por melhores condições de trabalho. A Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores Agricultoras Familiares – FETAG-PI providenciou advogados para que as indenizações ocorressem através da empresa. O diretório estadual do PT pediu ao INSS e a Secretaria de Segurança Pública  a intervenção da empresa ate que se averiguasse todos os fatos. Também foi pedida na mesma ocasião uma investigação minuciosa. A falta  de assistência por parte do donatário Ari Magalhães também foi destaque na imprensa: “Feridos denunciam falta de assistência e empresário diz que paga até operação”, destacou o jornal O Dia da edição de 23 de julho.

Curiosos na porta do Pronto Socorro do HGV (Foto: Jornal O Dia)

No dia 25 de julho foi organizada uma missa-manifesto alusiva ao Sétimo Dia de falecimento das vítimas. Ela foi realizada as nove da manhã no povoado Centro do Sítio, após a recusa da empresa em autorizar a celebração no local do ocorrido. O evento foi organizado pela Arquidiocese de Teresina, Comissão da Pastoral da Terra, FETAG, e a CUT. A missa foi presidida pelo vigário-geral monsenhor Luís Soares e concelebrada pelo então pároco de União padre Antônio José de Carvalho, um dos que se envolveram na causa. Participaram também familiares das vítimas; a Pastoral do Menor; membros do MST; sindicato dos bancários, comerciários, construção civil, e de confecções; além de representantes do PC do B, PT, e PSDB. A celebração contou, entre outras coisas, com a exposição de cartazes... “Se nascemos para viver, porque morrer tão cedo?”, dizia um deles. De acordo com a imprensa, cortadores de cana foram transferidos na véspera do evento para outras partes do canavial a fim de não terem contatos com a comissão organizadora.

Padre Carvalho  (Foto: Reprodução/Intagram:@muvis_pi)

Outro grande ato público ocorreu em Teresina após a realização da missa. Um grupo se dirigiu até a Praça Rio Branco para uma manifestação pública. Eles se juntaram a outros representantes de entidades trabalhistas para realizarem um protesto contra as péssimas condições de trabalho e contra a violação dos Direitos Humanos. As reivindicações se somaram aos da I Jornada Nacional de Luta Pela Terra, evento realizado naquele dia. O ato terminou com um protesto em frente ao Palácio de Karnak.

O acidente serviu pra evidenciar as decrépitas condições humanitárias e de trabalho oferecidas pela COMVAP.  Após a tragédia, a empresa continuou ainda por um longo tempo sendo acusada por esses protagonismos. Indenizações e esclarecimentos sobre o acontecimento também continuaram escusos. Sabe-se inclusive que muita gente ficou sem a devida assistência ou reparo por parte da empresa. A mudança desse quadro, só veio acontecer com a venda da companhia – então administrada pelo ex-senador Ari Magalhães –  para o Grupo Olho d'água, em 2002, onde se foi empreendido algumas melhorias. Hoje os trabalhadores são transportados em veículos apropriados (ônibus), e recebem os devidos equipamentos de segurança. As relações trabalhistas também não são mais as mesmas. Apesar de ainda não se ter alcançado as condições ideais, a realidade hoje é muito diferente daquela de 30 anos atrás.

(Foto: Acervo/Piquete Explorador do Estanhado)

Essa fatalidade, é sem dúvidas, a maior tragédia automobilística da história de União, e serve como um alerta para que eventos como esse não voltem a acontecer.

Fonte: jornal O Dia. Edições de 23, 25, 26 e 27 de julho de 1991. (A Cronologia do Estanhado: memórias).

*Danilo José Reis é professor e membro do grupo de pesquisa Piquete Explorador.

 

Compartilhe este conteúdo:

  Seja o primeiro a comentar!

Os comentários são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam a opinião deste site. Envie seu comentário preenchendo os campos abaixo

Nome
E-mail
Localização
Comentário