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Thiago Inácio: As cartas de Osael Borges ao povo de Lagoa Alegre

Thiago Inácio: As cartas de Osael Borges ao povo de Lagoa Alegre

Na coluna desta semana, Thiago Inácio traz a público as cartas de Osael Borges, escritas na década de 90, mostrando as tensões e atritos dos bastidores da emancipação de Lagoa Alegre.

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*ESCRITO POR THIAGO INÁCIO 

Esta coluna é publicada todas as terças-feiras.

Osael quando criança, ao lado de sua mãe e sua tia (Foto: L.A Memórias)

"O ideal de um povo não se negocia, não se vende, constrói-se! Defende-se até a própria morte, porque a honestidade, a dignidade do ser humano, não permite que na ausência dos cidadãos de hoje sejam incendiadas as consciências do amanhã."

Osael Borges Leal em carta aberta ao povo lagoalegrense.

Inspirado em uma conversa que tive com o professor Lourival Lopes, há algumas semanas, na rádio União, em que o mesmo endossava a participação popular na luta pela independência de quaisquer terras que sejam, resolvi escrever esta matéria, trazendo documentos históricos que situam o lugar de atuação do povo no desmembramento político de Lagoa Alegre.

O processo de emancipação de Lagoa Alegre foi, ao contrário do que se pensa, um caminho tortuoso com bastidores acalorados. Houve traição, insultos pessoais e ameaças das diversas formas. Foi um processo, fruto de um desejo antigo, que já em fins da década de 60 existia. Em decorrência do regime militar instaurado, este desejo somente pôde se reacender em 1988, quando da Nova Constituição, dando abertura, em seguida, à Estados e Municípios. Em 1991, viu-se a oportunidade de empreender a independência dessas terras, o que só aconteceu em 29 de Abril do ano seguinte.

É fato que, quando se fala em independência, sempre nos direcionamos à eleição de um herói. É fato também que, romanticamente, este herói é Francisco Vaz da Costa, o Di. Foi ele que com todo seu carinho à terra mãe, filho que era daqui, tomou a iniciativa legal de lutar pela independência, batendo de frente com forças políticas de União. Estas forças, a despeito das narrativas que buscam minimizar sua atuação, trataram de enrijecer o processo de emancipação. Isto porque, diferente de David Caldas, ou Novo Nilo, o povoado Lagoa Alegre, na década de 90, já não tinha grande importância econômica para União, mas sim política, uma vez que se tratava de um reduto do grupo partidário do poderoso Bona Medeiros. O desmembramento do povoado Lagoa Alegre significava a perda de milhares de votos, uma perda política considerável.

Foi necessário que um pequeno grupo desse cabo à luta pela emancipação. Tendo como figura central o então vereador, Di. O grupo tinha o apoio dos deputados Adolfo Nunes e Thomaz Teixeira, que tinham interesse na independência do povoado. Deste grupo participou, ainda, o veterinário e político Osael Borges Leal.

No entanto, a despeito da iniciativa de alguns, não se faria possível a emancipação se não pelo povo, uma vez que era para o povo e do povo este papel. Somente ele, e ninguém mais, poderia conceder a liberdade política-administrataiva de Lagoa Alegre. Foi o povo que a 19 de Abril de 1992 (data da votação plebicitária) disse, através de quase duas mil bocas, “SIM” à independência.

Di e Bona Medeiros à mesma mesa. (Arquivo: L.A Memórias)

Uma figura em específico foi muito importante neste processo, porque percebeu que a verdadeira força motora desta campanha seria a população. Este foi Osael Borges, que durante o processo tratou de escrever cartas abertas a população que são verdadeiros documentos históricos, mostrando nas entrelinhas os bastidores e a tensão existente à época. A equipe do Projeto Lagoa Alegre Memórias teve acesso a algumas dessas cartas.

Carta de Osael Borges Leal ao povo de Lagoa Alegre. Arquivo: L.A Memórias

Numa dessas cartas, Osael alerta a população de Lagoa Alegre sobre o que estava para acontecer no povoado:

“Em razão da proximidade das eleições para deputado Estadual e Federal, governador e senador, gostaria de chamar atenção do povo de Lagoa Alegre e localidades vizinhas para que a comunidade continue UNIDA E LUTANDO pelo direito de emancipação do povoado de Lagoa Alegre, pois o projeto de lei do “Novo Município” encontra-se na Assembleia Legislativa, com 45 outros projetos, aguardando a decisão do Tribunal Regional Eleitoral para a realização do "CENSO PLEBISCITÁRIO" que a acontecerá depois da realização das próximas eleições”

Em outra passagem, Osael exalta o poder do povo e da vontade popular:

“A proposta do NOVO MUNICÍPIO é séria, competente, verdadeira, porque surgiu da vontade popular, e representa a nossa INDEPENDÊNCIA. O grito de liberdade de nossa gente pela valorização dos seus direitos constitucionais, baseando nos limites de seu território, o progresso, o desenvolvimento de uma forma de vida justa e mais humana para o povo residente nesta região”. (...) “representa a inspiração de uma comunidade livre, soberana e capaz de realizar seu próprio desenvolvimento”.

A importância política do povoado Lagoa Alegre para o município de União também é reconhecida em outro trecho. Nele, podemos perceber a tensão entre os filhos de Lagoa Alegre e o grupo de Bona Medeiros, nos bastidores:

“Antes das duas propostas existirem, Lagoa Alegre estava ficando fora da relação dos novos  municípios simplesmente por questão de capricho e orgulho, de oportunismo, de vaidade pessoal de determinadas pessoas de grande prestígio político de União, que não queriam aceitar a ideia de transformar o nosso povoado em cidade, embora estivessem no dever e na obrigação de devolver ao povo em forma de reconhecimento a gratidão, os votos que sempre receberam em épocas de eleições. No entanto, os filhos pobres mais ilustres desta terra com coragem, fé em Deus, conseguiram se impor e defender o direito sagrado da comunidade, firmando em lei um documento que, se aprovado pela assembleia, permitirá este povoado e localidadesvizinhas realizar sua independência”.

Em uma segunda carta histórica, Osael Borges criticou aquilo que conhecemos como “coronelismo”, uma prática política onde uma elite exerce poder sobre pessoas simples, da zona rural, possivelmente referindo-se ao então deputado Bona Medeiros, o qual possuía fazendas em localidades rurais como Poços D’água e Poço do Gaspar:

“O povo deve ter cuidado, realizando uma profunda reflexão sobre o méritos de candidatos a cargos eletivos, afim de que o voto seja valorizado e não esquecido ou enganado pelas falsas promessas de políticos desta região que, em época de eleição aparecem se dizendo donos de currais eleitorais e comportando-se como verdadeiros coronéis em reuniões e comícios, prometendo e não cumprindo seus compromissos de campanha. Lagoa Alegre - sim - com fé em deus vai ser cidade, mesmo com a traição de pessoas ou contrariando interesses de alguns políticos de união”.

As cartas foram diversas, e escritas em meio ao processo de emancipação, com o intuito de informar a população sobre o que acontecia em Lagoa Alegre. No entanto, a comunicação da época era precária e os recursos escassos. Poucos habitantes chegaram a saber da existência dessas e, aqueles que souberam, o souberam apenas de forma rasa, muito distante. Com isso, outra figura se fez necessária e importante na publicidade das cartas de Osael Borges: o violeiro e repentista Tiago Coutinho.

Baluarte da cultura cantada de Lagoa Alegre, Tiago participava diariamente do programa “Todos Gostam de Viola”, da Rádio Livramento AM, de José de Freitas, com Juarez Pinheiro. Tiago Coutinho tratou de veicular as cartas à população por meio do programa, potencializando seu alcance. Ainda assim, tudo era muito temeroso à época, o futuro do povoado era uma incerteza e o risco de conseguir inimigos políticos era grande.

Segundo o violeiro, pedia o apoio das pessoas no programa pela emancipação política da cidade, pois "queria uma Lagoa Alegre independente para deixar de ser curral eleitoral de União, pois era assim que costumavam chamar. O rádio foi um grande meio de comunicação para acontecer esse projeto lindo que foi Lagoa Alegre emancipada".

Violeiro Tiago Coutinho. (Foto: Arquivo L.A Memórias)

 

As cartas abertas à população também tinham o objetivo de convencer aos cidadãos indecisos sobre seu voto no plebiscito. Para isto, em passagens do documento, pode-se ver uma lista de vantagens que teoricamente o povoado conseguiria se passasse à cidade. Essas vantagens íam desde a melhoria da educação até a geração de renda. E, de fato, o grande problema de Lagoa Alegre na década de 90 era o desemprego. A renda que circulava no povoado era a de aposentados que precisavam se deslocar até União em um pau-de-arara pertencente ao saudoso Joaquim Leocádio. No entanto, o dinheiro era gasto nos comércios de União, prejudicando a economia local. À época, o comércio em Lagoa Alegre se baseava no babaçu, e o capital estava monopolizado pelos comerciantes Leôncio e Gerson Araújo.

 

Com a inclusão de Lagoa Alegre na lista dos prováveis novos municípios, e o plebisicto realizado em 19 de abril de 1992, cerca de dois mil cidadãos foram às urnas. Destes, 1.739 disseram “sim” a emancipação, 123 disseram “não”, 54 votaram “nulo” e 60 em “branco”. Foi dessa forma que a luta empreendida por Francisco Vaz da Costa, Adolfo Nunes e o povo trouxe a independência ao município, dando início a uma nova história que já dura 28 anos.

“O desrespeito, a desigualdade praticada contra os humildes fere os princípios morais que norteiam a causa de um povo sofrido que luta, que quer o direito de ser livre, independente, e que vive de esperança por um dia poder ser feliz. 

Cordialmente, Osael Borges Leal.”.

Osael Borges discursa na Câmara de Vereadores. (Foto: Arquivo: L.A Memórias)

Thiago Inácio é estudante de Antropologia pela Universidade de Brasília e editor da página Lagoa Alegre Memórias no Facebook

 

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