Português (Brasil)

Danilo Reis: Os surtos epidêmicos em União

Danilo Reis: Os surtos epidêmicos em União

“O povo está se acabando aqui…sente-se o fétido dos cadáveres mal sepultados…já tem sucedido os cães comerem cadáveres abandonados”

Compartilhe este conteúdo:

 

*ESCRITO POR DANILO JOSÉ REIS 

Este texto foi originalmente publicado por Danilo José Reis no portal União Sem Fronteiras, editado por Jadson Lima.

O momento em que vivemos hoje, marcado por uma grave crise sanitária decorrente de uma pandemia já foi por nós testemunhado em outros momentos da História. Não é a primeira vez que convivemos com quarentena, riscos de contaminação e morte. Isso já foi experimentado em outras ocasiões ao longo da nossa existência. 

Pessoas tossindo (Foto: Reprodução/Internet)

Sofremos com problemas sanitários desde a época de povoado, ainda muito antes de nos tornarmos município. Nesse período muitas enfermidades já faziam parte da nossa rotina. Nessa época a principal causadora das moléstias era a completa falta de saneamento básico no povoado, quadro que levava a propagação de uma série de doenças bacterianas e parasitárias. A cólera, a disenteria, o sezão (malária), a esquistossomose, e várias outras, eram as responsáveis pelo alto índice de mortalidade. Esse estado chegou a interferir inclusive em momentos cruciais da nossa História, como nos arremates da Guerra dos Balaios. Em 1840 o comandante das tropas governistas estacionadas aqui, foi obrigado a transferir o Hospital-de-Campanha para outro local devido o alto grau de insalubridade existente. Destacou ele: “tenho a informar que em grande admiração me acho por ver ainda existir neste Acampamento homens com vida (…) por quanto um ar tão mefítico, e impregnado de miasmas pútridas (…) um lugar sito na margem de um rio cujas águas são de péssima qualidade…”. A situação era notoriamente  desoladora, e assim continuou por várias décadas seguintes.

No início dos anos 1860 o cenário continuava o mesmo. “As ruas se acham entregues ao desprezo…”, chamava atenção nossas autoridades para a negligência com o asseio público. A falta de higiene e o péssimo estado sanitário continuava dominando a paisagem. Essas condições foram as responsáveis pelo agravamento de um grande surto epidêmico chegado aqui nesse período. Entre 1863 a 1866 experimentamos a nossa primeira grande epidemia, causada por um flagelo de febre-amarela e cólera-morbes, doenças de grande proliferação em ambientes como aqueles em que nossos antepassados viviam. A contaminação foi rápida e letal. Segundo dados oficiais, aqui faleciam de três a quatro pessoas diariamente, sem contar os óbitos não notificados. A epidemia não escolhia sexo, cor, ou condição social.  Em 1866 – no “pico” da epidemia – faleceram duas figuras de destaque para a nossa sociedade de então: os irmãos Scipião Carvalho Lobão (caixeiro), e Antônio José de Lobão (delegado), ambos sepultados na Igreja Matriz. Pela proximidade das datas dos óbitos, certamente eles também foram vítimas da febre ou da cólera. Foi um quadriênio de perdas, sofrimento, e muito desespero para as famílias unionenses.

Entretanto, a cólera e a febre-amarela foram apenas o preâmbulo para o que viria logo em seguida. Após cerca de dez anos, fomos acometidos novamente por um novo ciclo epidêmico, agora bem mais avassalador. Desde 1875 um surto de varíola vinha castigando a nossa região, já contabilizando muitas vítimas. O que já era crítico ficou ainda mais melindrável com a chegada de uma grande seca, iniciada em 1877, considerada por muitos a maior seca da História do Nordeste. A “Seca dos dois setes”, ou “três setes”, como costuma ser chamada, atraiu milhares de retirantes para as nossas cercanias. A maioria deles chegavam em situação de miséria e de alta vulnerabilidade, muitos já acometidos pela doença. Esse quadro contribuiu bastante para o agravamento da situação. As mortes que já eram rotineiras, “quadruplicaram” durante a seca. Entre 1877 a 1879 a varíola promoveu uma verdadeira “carnificina”, chegando a causar efeitos parecidos com os que enfrentamos atualmente com a pandemia do covid-19

“O povo está se acabando aqui, os enterramentos são feitos no campo próximo a vila; a noite sente-se o fétido dos cadáveres mal sepultados e já tem sucedidos os cães comerem cadáveres abandonados”, descrevia a imprensa em 1879 (A Época, 1879)

O cenário era de terror! Esse surto passou a ser chamado de “a peste”, em alusão aos efeitos da peste negra da Idade Média. Autoridades, gente pobre, escravos, fidalgos, flagelados, todos eram acometidos. O governo da Província, assim como a Diocese de São Luís  (não qual pertencíamos), criaram comissões de socorros para tentar amenizar a situação. Os resultados foram pouco eficazes. Assim como o “corona” a peste fez paralisar nossas atividades. Ela provocou a interrupção das sessões da Câmara Municipal, das celebrações religiosas, o afastamento de autoridades de suas funções, e causou até o esgotamento do nosso único cemitério público. Parafraseando aquele velho jargão, “já não tínhamos mais onde cair morto”. A epidemia quase conseguia a façanha de “expulsar” o nosso principal progenitor, João do Rego Monteiro – o barão de Gurguéia. Ele chegou a pôr à venda grande parte do seu patrimônio em nosso município, a fim de emigrar para fora do Piauí. Os efeitos da devastadora varíola só foram amenizados a partir de 1880, após meia década de aniquiladora epidemia. Em 1883 a Câmara Municipal foi recomendada a “vacinar” toda a sua população, a fim de se prevenir contra futuros novos surtos.

peste não veio mais, porém mandou “suas representantes”. Após a varíola, não se demorou muito pra convivermos com um novo pesadelo. Nos anos de 1888 e 1889 sofremos com um novo surto, uma epidemia de sarampo, vírus altamente infectocontagioso , que trouxe consigo o “velho” conhecido sezão, ou malária. Elas vieram acompanhadas de mais um ciclo de seca, e por conseguinte, por uma nova onda migratória. O cenário era bastante similar ao de 1877. O número mortos foi bem elevado, no entanto, inferior ao da dizimadora peste. Para evitar as mesmas sequelas, foram criados alguns mecanismos de combate ao surto. Além das tradicionais “comissões de socorros” outras medidas  foram tomadas. Uma delas foi a inserção de um novo artigo no nosso Código de Posturas, determinando a suspensão das exportações de gêneros alimentícios, como forma de garantir o suprimento de alimentos para os mais debilitados. Dessa maneira, conseguimos nos livrar de mais um período delicado.

Na virada do século XIX e início do século XX tivemos alguns pequenos sustos, mas nada comparado aos períodos anteriores. Em 1898 um possível surto de (raiva) foi a gota d’água para espalhar o pânico entre nossa população. Suspeitas de que alguns cães teriam contraído a raiva levou muita gente a matá-los indiscriminadamente.  Apesar das consequências, as suspeitas não passaram de um susto. No entanto, os pesadelos de outros tempos insistiam em querer voltar a nos atormentar. Durante a grande seca de 1915 uma nova ameaça apareceu. O Centro Agrícola David Caldas foi acometido por um surto de “febres perniciosas”, provocado pela péssima condição da água. A “velha” cólera foi a responsável por levar muita gente  para o cemitério, que diga-se de passagem também entrou em colapso. A alta mortalidade no Centro chamou atenção inclusive da imprensa nacional. “David Caldas é um centro de morte”, destacou uma gazeta carioca. Apesar da gravidade o surto não saiu dos limites da velha colônia, tranquilizando o restante da nossa população.

Após isso, passamos mais de um século sem convivermos com situações parecidas. Porém esse tabu foi quebrado agora com a pandemia do novo coronavírus (covid 19). Altamente contagiosa, a enfermidade nos faz reviver esses tempos sombrios aqui recordados. Esperamos que assim como eles possamos passar o mais rápido possível pelo “olho do furacão”. A cólera, a malária, a febreamarela, o sarampo, a pestilenta varíola, e agora a covid-19, são atores de um passado nem tanto incomum. As epidemias, pandemias, surtos e pestes, nunca deixarão de existir. Cabe a nós aprendermos com elas.

(Danilo Reis, PEE)

Fonte: Portal União Sem Fronteiras 

Compartilhe este conteúdo: