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Danilo Reis: O sequestro da Feliz Donzella

Danilo Reis: O sequestro da Feliz Donzella

A cobiçada barca que caiu nas garras dos comerciantes unionenses...

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*ESCRITO POR DANILO JOSÉ REIS 

Esta coluna é publicada todas as segundas-feiras e trás a história, os fatos, os mitos e as polêmicas do município de União (PI).

Em 1878 o Piauí assim como todo o Nordeste sofria com os efeitos da seca mais devastadora de sua História, a seca de 1877-79. Além das perdas humanas ela trouxe muito prejuízo as lavouras e rebanhos, causando o desabastecimento de vilas e povoados. Isso resultou num aumento desenfreado no preço dos gêneros alimentícios.

(Foto: Reprodução)

Em União a situação não era diferente. Além da crise econômica enfrentávamos uma crise humanitária. Milhares de flagelados surgiam a cada dia nos arredores da Vila em busca de refúgio e de coito. Isso contribuía para o agravamento da situação. Era uma situação de calamidade pública !

Por essa razão, o desabastecimento levou a uma corrida desenfreada por alimentos, sobretudo pelos especuladores. Comerciantes locais, interessados em negócios vantajosos, buscavam a todo custo as mercadorias que mais dessem lucro. Por esse período o porto da Vila era bastante movimentado por vapores e outras embarcações que traziam passageiros e mercadorias. Uma delas, chamada Feliz Donzella, foi objeto de desejo de um desses comerciantes em abril de 1878, sendo praticamente “sequestrada” por ele  em razão da carga que transportava.

A embarcação pertencia a um negociante chamado Francisco Gomes, que mercadejava suas mercadorias nas vilas e principais povoados ribeirinhos ao longo do Rio Parnaíba. Comercializava gêneros como café, açúcar, rapadura, e sal. O sal, era o insumo que mais tinha subido de preço, vendido a “preço de  ouro”. Em União, por falta de estoque, o preço triplicou. Em 18 de abril, se soube em União da vinda da Feliz Donzella trazendo um carregamento para ser comercializado na vila, notícia que alvoroçou os varejistas. Um deles, chamado Antônio Rios, tentou ganhar vantagem indo ao encontro da embarcação antes que ela atracasse no porto. Ele intentava adquirir a “preciosa” carga antes dos concorrentes. A Donzella tornou-se então a “menina dos olhos” do comerciante unionense.

Ainda no dia 18 ele subiu o rio e a alcançou na altura do povoado Santa Rita, onde, sem delongas, tratou de colocar em prática seus planos inescrupulosos, para isso se utilizando de um embuste para adquirir o desejoso carregamento.

Ao avistar o capitão Francisco Gomes, o cobiçoso comerciante, fazendo-se de desentendido, indagou o mesmo sobre o carregamento trazido. Ao ouvir a resposta Antônio Rios tratou de criar um embuste, a fim de ludibriar o negociante. Entre outras mentiras, ele alegou que tanto o sal, como quaisquer outros gêneros alimentícios era de sua exclusividade a comercialização em União, fruto de um contrato de fornecimento com o governo da Província. Diante da informação, Francisco Gomes sem muitas alternativas, aceitou fazer um contrato de compra e venda ali mesmo, a bordo da embarcação. Sem imaginar o tamanho do engano negociou o produto por um preço bem abaixo do que era praticado em União. Com o negocio fechado, a mercadoria deveria ser entregue assim que chegasse na vila.

Localidade Santa Rita (Foto: Danilo José Reis)

No entanto, ao desembarcar na “cidade” o negociante tomou conhecimento dos fatos. Rios não tinha nenhum contrato com o governo, e o preço do sal estava muito acima do valor vendido. Ciente de que foi enganado tratou de procurar com um advogado a fim de cancelar o referido contrato. Na companhia do advogado Teodoro Pacheco, o comerciante procurou o delegado de polícia Luís José de Santana com o intuito de solucionar a questão. O delegado foi bem categórico. Não era da sua alçada. Sem dar ouvidos aos requerimentos os mandou falar diretamente com o próprio Antônio Rios. Diante da postura da autoridade policial, pensaram: não seria o delegado cúmplice dessa armação?!

Sem muitas alternativas procuraram Rios, e como o esperado se negou em desmanchar o negócio. Sem ter muito o que fazer naquele momento  Francisco Gomes subiu o rio até o “porto da Barrinha” (localidade Barrinha) a fim de pernoitar e no dia seguinte retornar a vila para tentar solucionar a questão. Na “Barrinha” a Feliz Donzella teve companhia. Ainda no dia 19 o delegado acompanhado de dez soldados foi até a embarcação buscar parte da mercadoria vendida. Sob múltiplas ameaças e intimidações, a carga foi tomada da Donzella sem possibilidade de qualquer reação. As suspeitas estavam corretas, o delegado estava envolvido na “conspiração”. Antes de saltar da embarcação ele deixou alguns soldados vigiando o comandante, para que o mesmo não fugisse antes de ser entregue o restante do sal.

A sobra da carga foi recolhida ainda no mesmo dia, seguido de uma proposta um tanto indecente enviada pelo “embusteiro” Rios. Por meio do delegado e de um outro comerciante, foi oferecido uma quantia a mais de 25.000 reis pelo restante da mercadoria a ser recebida (cerca de 1/3), com a promessa de ser pago em União, a troco de que o mesmo assinasse um documento atestando reconhecer o contrato feito. A proposta foi recusada e gerou de saldo mais uma nova  frustração. O restante da carga foi levada e deixada todo o prejuízo para o negociante.

 A Feliz Donzella deixou o porto da Barrinha desnuda, triste e violada, após ter sido enganada e ter passado quase 72 horas sob a mira da ganância e da truculência de comerciantes e autoridades unionenses. Após esse episódio tanto á embarcação quanto seu proprietário não desceram mais o rio para fazer negócios em União.

Essa não foi a única vez em que o sal protagonizou situações como essas. Em 1930, o fiscal federal João Vasconcelos interceptou uma carga do mineral vinda de Jose de Freitas, que seria contrabandeado através do porto da cidade. A mercadoria pertenceria a uma firma comercial importante daquela cidade. Foi um escândalo! Mais recentemente, em 1988, a utópica “Barca do Sal” sulcou nossas águas trazendo um carregamento do litoral com destino no sul do Estado. Sua passagem no “cais” foi uma grande atração. Infelizmente, mais uma vez, o sal não chegaria ao seu destino final.

*Danilo José Reis é professor e membro do grupo de pesquisa Piquete Explorador.

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