A tradição do Birim no povoado São Francisco
No povoado São Francisco, município de Pau D’arco do Piauí, a comunidade mantem viva uma tradição secular, e que vem sendo passada de geração em geração. O tradicional folguedo recebe o nome de “Birim”.
Origem
No povoado São Francisco, município de Pau D’arco do Piauí, a comunidade mantem viva uma tradição secular, e que vem sendo passada de geração em geração. O tradicional folguedo recebe o nome de “Birim”, e acontece todos os anos durante a Semana Santa. O memorialista Thiago Inácio e a historiadora Vanessa Diniz visitaram o povoado e conheceram de perto a dança típica. Leia o que escreveu Thiago Inácio:
O tradicional “Birim”, que ocorre anualmente no povoado São Francisco, é uma dança tipicamente piauiense. O folguedo acontece também em outras cidades do Piauí, bem como no interior do Ceará, onde têm outras denominações. Em Monsenhor Gil e em Lagoinha do Piauí, por exemplo, essa manifestação recebe o nome de “Balandê” ou “Balandê Baião”, em referencia ao Baião de Luiz Gonzaga, que influenciou as cantigas do folguedo. Em Monsenhor Gil, o Balandê (Birim), se popularizou na década de 1940, com Mestre Zé Coelho, mas relatos históricos remetem a sua origem no século 19, por escravos refugiados.
No povoado São Francisco, o “Birim” ganha um contorno familiar. Isso porque a tradição começou com a família Brito, ainda em tempos remotos. Segundo o Mestre Vanja, organizador do folguedo, que conta hoje com 62 anos de idade, seu pai Gerônimo Brito foi o grande baluarte do Birim no povoado, festejando a dança por muitas décadas. Ainda assim, a tradição pode ser ainda mais antiga, uma vez que sua avó, Raimunda Brito, participava das rodas de Birim.
Gerônimo Brito e Martinha Brito. Foto: Thiago Inácio.
Segundo Mestre Vanja, antigamente, quando o evento era organizado por seu pai Gerônimo, a dança recebia o nome de “Baronete”, o que podemos entender como uma corruptela da palavra “Balandê”. A denominação “Birim” só começou a ser utilizada quando Mestre Vanja assumiu a organização do evento, a partir do ano de 1982. Ele conta que o nome Birim foi retirado de uma cantiga que já era cantarolada por seu pai. Os versos diziam: “O Birim já começou/ ninguém queira duvidar/ começou à boca da noite/ vai até o sol raiar/ Oh, Birim, Birim, Birim...”.
Quando o senhor Gerônimo Brito organizava, a dança acontecia durante as quarenta noites da quaresma, após a missa na capela, e era realizada no terreiro de sua casa, sob a luz difusa de um candeeiro de três bicos. “Antigamente, do tamanho que era a roda, o capim morria... e nós não respeitava chuva, era a água caindo e nós dançando.”. Hoje a dança acontece no campo de futebol do povoado e é realizado em apenas dois dias da Semana Santa: quinta e sexta-feira.
A dança
A tradição reúne crianças, jovens, adultos e idosos da comunidade e de fora, que cantam e dançam em roda. O movimento que caracteriza o folguedo é o aperto de mão, que vai se alternando, enquanto cada um marcha, batendo forte o pé no chão, em uma única direção e cantam, à capela, as diversas cantigas tradicionais do Birim. Esse movimento sincronizado faz a roda girar, junto às letras das músicas, que retratam o cotidiano vivido, e constituem a dramaticidade do ato.
Nas beiras da roda, o público se arranja para ver o espetáculo. Alguns sentam-se em cadeiras trazidas de casa ou do bar ao lado; outros observam em pé. As crianças, curiosas, se agitam, e um ou outro até entra na roda. Os mais antigos na tradição conversam entre si e combinam o início da roda. Aqueles que desejam participar são convidados a dar as mãos, formando uma grande ciranda, que fica maior à medida que chegam mais participantes. O mestre Vanja tem o dever de começar a cantiga que puxa o movimento da roda, e depois, quando já deram algumas voltas, soltam-se as mãos e uns e outros, em movimentos convergentes, atracam-se nas mãos ou braços em um gesto ligeiro, e assim o fazem com os demais, até que tenham apertado a mão de todos da roda, e repetem o movimento ininterruptamente, enquanto as várias cantigas ressoam uma depois da outra. A certa altura do rito, cessam as cantigas e a roda para um breve descanso. Pouco depois, já estão prontos para uma nova rodada, que se repete outras tantas vezes.
Populares na roda do Birim. Foto: Thiago Inácio.
Entre as formas de dança, há aquela que se dança “só”, e aquela que se dança em casais. A dança de casal se inicia com a contagem do número de participantes e a formação de uma fila, que logo se transformará também em uma roda. É necessário que haja um número igual de homens e de mulheres, sobrando apenas um homem a mais, que desempenhará, no teatro do imaginário, o papel de “ladrão”. O ladrão espreita a roda de casais e tem o papel de “roubar” o par de um dos outros cavalheiros. Para isso, o ladrão deve tocar no ombro do homem acompanhado, que neste momento deve soltar sua companheira e trocar de lugar com o ladrão. Aquele, agora, tem um par na dança, e este outro deve roubar a mulher de outro homem. Nesta forma de dança, não se pode abandonar a roda sozinho. Deve-se sempre sair junto ao par, a fim de que se mantenha o número exato de casais e não sobrem nem homens, nem mulheres. Outra importante característica dessa modalidade é a disposição de homens e mulheres. O homem deve estar sempre à direita do par, para que se torne mais fácil a troca de lugar com o ladrão, que está do lado de fora da roda.
O povoado
O povoado de São Francisco, do município de Pau D’arco, é uma comunidade bastante coesa, e até muito desenvolvida. Durante nossa viagem, indo pela capital Teresina, passamos por muitos caminhos de mato denso. Num determinado ponto, o mato deu lugar a uma pista asfaltada, e depois ao mato novamente.
À medida que avançávamos mata adentro, em caminhos estreitos, o ônibus coletivo que nos transportava se esvaziava. Com o tempo, restávamos apenas nós. Apesar da sensação de estarmos indo para um lugar remoto, noto a existência de água encanada e energia elétrica. Apesar disso, não há sinal telefônico, e as estradas são péssimas para trafegar. O senhor Raimundo, motorista do único ônibus que faz a linha entre o povoado São Francisco e a capital Teresina, percebe-se, é um senhor muito simpático e querido de todos. Seu Raimundo é um guerreiro, abrindo caminho para que outros guerreiros cheguem, todos os dias, às suas casas e locais de trabalho.
Depois de quase três horas de viagem no ônibus do senhor Raimundo, deparei-me com a primeira igreja. A fé cristã é magnânima, e se materializa em todas as partes do planeta.
Os caminhos estavam enxutos. Ao que parece ali não havia chovido há um tempo. Passamos por alguns poucos brejos e dois lagos pouco cheios.
Durante quase todo o trajeto não passamos por um sequer cemitério. Já ao fim da viagem, recompensou-se a falta de todo o resto, cruzamos por três sepulcrários, um ao lado do outro. A conclusão foi ligeira em meu pensamento: aqui também se morre.
O povoado São Francisco se estrutura basicamente ao redor de uma estrada de calçamento que corta a localidade de ponta a ponta. Nas encostas dessa rua calçada se encontra o núcleo de sociabilidade da população. Há um campo de futebol, onde há, além da prática rotineira do esporte, a realização de campeonatos que agitam a vida social da comunidade. Todos se aglutinam para ver os jogos, de suas calçadas, que ficam muito perto, ou da beira do campo. De um lado do campo, se encontra o Bar do João Brito, e do outro, o Bar do Julimar, que funcionam como ponto de encontro da juventude e da população em geral. Nas noites de festa, há movimento em ambos os clubes. Para quem preferir uma pizza, há a pizzaria do Carlos.
Ali próximo, há também outros pontos de interesse, como o morro do São Francisco, de onde se pode ter uma vista de toda a localidade.
Vista do Morro de São Francisco. Foto: Thiago Inácio.
Para os banhos de lazer, há no povoado dois açudes, o açude dos Franças, que é recente, e o açude do Mundico Boião, que se encontra “desativado”. Durante o dia, adultos e idosos se entretêm em bancas de baralho, que se espalham por vários cantos da comunidade.
Populares em banca de baralho no povoado São Francisco. Foto: Thiago Inácio.
A comunidade conta com ao menos dois templos religiosos, Um católico e outro evangélico. A igreja de São Francisco das Chagas é bem postada, e fica logo à beira do calçamento. A Congregação Batista é recente, e por tanto menos estruturada. Fica um pouco distante do centro do povoado, próxima a ladeira do Caipora. Lá poucos a frequentam, e o pastor vem apenas esporadicamente.
O povoado São Francisco é um lugar bastante familiar, onde há, aparentemente, um forte senso de coletividade. Este fator reflete ou é refletido na tradição do Birim, que é em sua essência uma representação coletiva da vida cotidiana, em que o indivíduo executa movimentos dentro de uma dinâmica definida pelo todo, e por isso recebe a incumbência de fazê-lo de forma competente, a fim de não causar contratempos ao todo, que no Birim se expressa na ciranda que roda, dança e canta.